O carro acerta o poste
a exatos 123 km/h. O motor é estraçalhado e o para-choque se divide em dois.
Finalmente a sirene para de apitar.
Ele via tudo isso em
2,6 segundos olhando para o espelho retrovisor. Sua atenção agora se voltava
para a movimentada rua a sua frente e aos outros três carros que ainda o
perseguiam. Parecia uma cena de filme, quem dera fosse, já que Hollywood sempre
encontra uma maneira absurda de salvar os personagens, porém ali não haviam
câmeras ou coreografias ensaiadas, o perigo era real demais. Em 1,5 milésimo de
segundos seus neurônios trocam cargas elétricas e ele pensa a respeito do que
poderia haver dado errado. Cada passo já havia sido detalhadamente repassado,
cada importuno já havia sido reparado. Agora chegava ao ponto onde ele não
podia mais confiar em ninguém ao não ser seu volante e seus reflexos, velhos
companheiros. Sua mente o perturba, o distrai. Olha novamente para o retrovisor
e vê apenas dois carros.
“Para onde foi o
terceiro?”.
Sabe todo aquele lance
de rever parte do seu passado enquanto esta em uma situação de alto risco?
Bem isso às vezes
acontece, portanto ele se lembra.
“Andava pela rua
descompromissado. Talvez rumo a mais uma cicatriz em seu corpo, já que aquele
não era um bairro muito seguro e ele não tinha nenhuma noção de perigo como a
maioria das crianças naquela idade. Passa por uma loja de televisores e fica lá
parado, estático, apenas assistindo. Esquece-se por alguns segundos da fome e
miséria. O que ele assiste são imagens de um documentário sobre peixes que
vivem nas profundidades extremas do pacífico onde a pressão pode chegar a ser 500 vezes maior que a da superfície. Caso
subissem esses peixes iriam simplesmente
explodir. Existem alguns peixes que habitam a faixa de 1 km de profundidade e
são bioluminescentes. Essa região se chama fossas marianas, um dos lugares mais
profundos do mundo. Por pura coincidência o nome de sua mãe era Mariana, mas
aquele documentário naquela época não passava de cenas de peixes brilhantes. Mal soubera ele o quão importante aquelas imagens viriam a ser.”
O terceiro carro então aparece, bate na lateral
do carro fazendo com que a inércia seja tão alta que o atrito dos pneus se
torna desprezível. O carro é obrigado a entrar em um desvio.
“Se cansa da loja de
televisores, esquece o que deveria estar fazendo na rua naquele instante e volta
para a casa. Poucos metros antes de entrar em casa ele houve gritos de
desespero, não consegue identificar quem é, mas também não se preocupa, aquilo
era comum. Bate na porta duas vezes como de costume e sua mãe abre. Ela usa um
vestido que já fora branco e agora era vermelho. Ela entrega um cartão e ele
tenta entrar em casa, mas ela não permite. Ele consegue espiar uma cadeira com
algo amarrado por cordas, algo com muito ketchup. Ela então o coloca dentro de
um táxi que já estava parado na rua. Cuidadosamente coloca o cinto de segurança
e fala: Se lembre para sempre desta frase meu anjo ‘antes eles do que nos’ a
porta do carro fecha. Ele nunca mais viu seu pai ou sua mãe.”
Ele percebe que esta
se deslocando vetorialmente contra uma barreira de três carros cada um medindo
3 metros de comprimento. 3x3=9. Bem essa não foi difícil.
“Saiu do orfanato. Nunca
tinha estudado, não tinha vontade nem dinheiro, porém sempre foi uma criança
entusiasta de ciência e natureza por menos que conseguisse entende-las. Teve de
trabalhar. Acabou caindo em um supermercado como embalador, o salário mal dava
para o aluguel do lugar que ele chamava de casa. Seu alimento consistia
basicamente das sobras do supermercado. Então enquanto voltava para sua sala de
8 metros quadrados com banheiro incluso, lembrou-se da loja de televisores. Lembrou-se
dos peixes. De sua mãe e do seu maldito pai que tentava estupra-la todos os
dias. Sofre muito. Já fazia seis meses que ficava três dias da semana sem comer.
Solução? Comprar uma arma e acabar com todo aquele sofrimento. Irônico uma
pessoa ter como único objetivo de vida dar um fim na mesma. Começa a rir e cai
no chão, o riso agora se transforma em choro. Após puxar a gaveta a arma não
estava mais lá, a porta tinha sido arrombada e a janela escancarada. Sua vida
estava acabada por não poder mais acabar. Ele sofre uma catarse na mais densa
escuridão que os peixes das fossas marianas têm que gerar a própria luz. Ele
pensa ‘E se eu gerasse meu próprio sentido pra isso que um dia eu poderei
orgulhosamente chamar de vida? ’”.
Ele aperta um botão
perfeitamente circular. Esse botão possuía o desenho de um cilindro e alguns traços
que se assemelhavam a fumaça. O botão vai para trás e não volta como se ficasse
preso.
“No dia seguinte o supermercado
abre para o público. A validade de grande parte dos produtos havia sido
alterada, o que fez com que as vendas do supermercado fossem insignificantes
naquela semana, além de deixar a fama de ser um local que vende apenas comida
estragada que por pura coincidência foi o que ele comeu por mais de seis meses.
Essa homenagem dele ao supermercado foi apenas um treinamento, ele estava
determinado a entrar em um campus de estudo de física dos mais avançados do
estado. Nunca tendo estudado isso soaria impossível, mas nunca subestime um
homem que nao tem mais nada a perder. Ele criou um plano metodicamente elaborado
e revisado. Primeiro: iria persuadir uma das secretárias, nem que tivesse que fazer
favores sexuais para isto. Não foi muito difícil, ele era um rapaz bem
apessoado. Segundo: achar um alvo eliminá-lo do banco de dados e substituí-los pelos
seus, isso sem que ninguém sequer notasse. Terceiro: achar a vítima eliminá-la
sem deixar evidências e tomar seu lugar. O plano ocorreu exatamente como na
teoria, ninguém notou a falta de Julius em uma sala de 200 alunos, ainda mais
sendo o ultimo integrante de uma família que não se falava a mais de uma década.
Se tornou aluno de faculdade ganhando bolsa em alimentação e moradia. Terminou
seu estudo e se tornou um profissional, mas depois de algum tempo aquilo também
perdera o sentido. Agora não se interessava mais tanto pelo trabalho como físico,
precisava de algo a mais. Se questionava se tinha adquirido um vício. Depois de
tornar-se um mecânico, um professor do
primário, um piloto de planador e um jardineiro, o que se perguntava agora era
se ser um sociopata consciente da sua insanidade o tornaria menos errado no ponto de vista social? Outra pergunta que
costumava fazer era se realmente foram necessários todos os assassinatos
cometidos ou se ele não conseguiria mais um emprego sem ter que matar alguém
para isso ”
O botão da um leve
pulo piscando uma luz laranja. Ele arranca o botão e o encosta em um longo fio
de pano que agora começa a ser queimado rapidamente. Ele larga o botão e então suas
habilidades no volante são novamente testadas. Faz um giro de 180 graus com o
carro fazendo que a aceleração diminua mais de 60 por cento, embora nesse
momento ele não da à mínima para estes dados. Agora seu carro segue de ré.
“Seu trabalho mais
recente foi em um laboratório de química, assunto o qual sempre fora
apaixonado. A tática para trabalhar nesse laboratório não foi muito diferente
do que a do seu emprego com estudante de física, a diferença foi que ele teve
de escolher a vítima muito mais calmamente. Desta vez foi um estagiário que se
quer tinha conseguido ir a seu primeiro dia de trabalho. Seu corpo foi
escondido em um ferro velho para depois ser derretido em ácido no laboratório.
Como estagiário seu trabalho era basicamente levar substâncias químicas de um
laboratório para outro e ajudar criando soluções para novos cheiros de perfume
e aromas artificiais para produtos alimentícios. Após substituir todas as
funções do antigo falecido e passar alguns dias trabalhando, foi levar dois barris
de acido úrico para um depósito na zona norte da cidade. Ele não esperava ter
companhia, olhou atrás e viu três carros da policia buzinando e acelerando. Os indivíduos
dispostos dentro desses automóveis estavam a gritar em megafones para que ele
parasse o carro. Ele arranca a camiseta e a prende em um dos barris, sequencialmente
aperta um botão.”
Nesse momento ele se
perguntou como foi deixar de investigar o passado do maldito estagiário, fala
pra si mesmo diversas vezes palavras soltas e desconexas, algumas com o intuito
de se acalmar. Vira-se bruscamente para checar como está o pavio dos barris de
ácido e então percebe que sua camiseta acaba de voar pela janela enquanto
flamejava. Ele pensa “quem diria que eu enlouqueceria somente agora?”. Olha pra
trás vê que não tem muito tempo antes do impacto. Fecha os olhos e pensa “Mas
que merda morrer em um carro de merda desses”. Nem pensava em acelerar o carro
e tentar fugir, preferia morrer a ser pego pela policia. Tentava pensar que
finalmente reencontraria sua mãe, mas então se lembrou de que assassinos vão
para o inferno. Começa a chorar pensando que vai ter que ver seu maldito pai
mais uma vez. Da um soco no banco a sua direita, olha pra baixo e vê o isqueiro
do carro “o botão”.
Quando trabalhou como
mecânico acabou conhecendo muito sobre criação e manutenção de bancos e descobriu
que boa parte dos carros mais econômicos tem bancos com espumas que quando colocados
sob o teste NBR9442 apresentam-se predispostos na classe E (que possuem fatores
de propagação de chama e evolução de calor >400).
Ele arranca a capa do
banco e encosta o botão a espuma. Vê uma pequena faísca e pula do carro. A
explosão estoura seu tímpano e ele rola pela estrada de asfalto que rapidamente
queima seu macacão químico com o atrito e sequencialmente sua pele. Olha pro
seu joelho e consegue enxergar parte de seu osso, ele não precisava ter sido médico
para saber que aquilo não era bom. Escorre um fio de sangue misturado com sujeira
preta do seu ouvido, ele se vira e o que vê e apenas um bolo de alumínio
distorcido e completamente escuro. Ele olha pra cima e vê uma nuvem de fumaça
tão preta quanto às fossas marianas. Ele se levanta dos dois passos e cai. Se
levanta novamente, da cinco passos e desmaia. Acorda enquanto está sendo puxado
por alguém. Sente ser colocado no banco de trás de um carro e ouve algo
parecido com “aguenta firme que vou te levar para um hospital. Moço como fosse
conseguiu se machucar dessa maneira?” ele balbucia “cai de moto...”.
“Antes eles do que nós.”
-Kauwba & Nick
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